3 de febrero de 2012

I t i n e r á r i o



UNO
Árvores citadinas
Póstero
Colheita
Amanhecido
Primeira pessoa
Antípoda
CHUVA ALHEIA
Canto para Horiz
Chuva Alheia
Noite de Almirante
Imperativo do Beija-Flor
Cumplicidade
Soneto para o Azul
CASA DE BARRO
Pedra da Baleia
Casa de Barro
Hermanadas
Contemporaneidade
Bogotá
Placebo
Passarinho Solitário













UNO





A pesca era sempre do lado de lá.

Havia uma neblina fina escondendo
a outra borda do rio. Ele estava cheio,
pouco a pouco foi atravessando
suas pedras e o leito estreito, quase
morto.

Ficávamos muito tempo por ali, olhando
o desenho da flor d’água
estilhaçada pelo vento,

que insistia arrastar aqueles barcos
para outros cantos além do horizonte.

Toda viagem guarda um tanto
do porto, um pouco de nós,
algumas doses de sustos
e uma pena solitária
riscando o horizonte.

O rio, em verdade,
estava sempre cheio,
mesmo quando os barcos
pisavam na lama
calejando o dia
com nossos pés
descalços.





ÁRVORES CITADINAS





A árvore sombreia o silêncio
da tarde azulada. No varal,
um arco-íris veste a serpente

despercebida, instigando
os olhos curiosos do gavião.
Sobrevôo o arrebol e canto.

As borboletas laminam o vento,
enquanto a árvore permanece
dançando à sombra do firmamento.

Qual verbo escapará ao princípio humano
e ao fim riscado faz tempo? E aqueles galhos,
e aquela sombra?

Queimam na fogueira sagrada dos homens.





PÓSTERO
Para Alcides Santana





Palavras atam a fé
no interdito entre o sol
e a lua. Orientam-se
o tempo todo por ali,
por aqui; pelo sim, pelo não.

Seguem os ponteiros dos
segundos, minutos, horas
a fim de voltar à Caverna:

estrelas recheadas na parede
de pedra e cal, aquela iluminada
por espadas e pelo brilho de olhos.

Um verbo aciona
o lançamento das palavras
e elas vão, e elas vêm;

ficam atadas na claridade do sol,
da lua, em nossos olhos,
nas páginas rasgadas

muito além do ontem,
muito além do amanhã.
Todavia,

no papel se desfaz
depois de clarear
a imensidão de um livro fechado.





COLHEITA





Regar os olhos
à flor da pele
sem a gota d’água
entardecida.

Qualquer horizonte,
no risco da mão,
avermelha
a tarde despida
em nossos braços.

Cada pétala
espinha o cheiro
esvaído da paixão
desenhada no gira sol
apontado para o sagrado
coração de Jesus: risco
universal da retidão.


O azul modelando a tarde
rajada de laranja avermelhada
raspa dos olhos o segredo diário
de vestir-se um dia de cada vez.

Sujos de tempo.
Com lágrimas... café preto,
vinho, enchemos a mesa e o prato vazio.





AMANHECIDO





Amanhecer flor orvalhada
na primavera escolhida
pela estrela maior, sem dores
de ontem, nem do futuro,

se agora a lei é lapidar
cada pétala com o cheiro
de brisa caída suave sobre
os minutos que nos levam
a lugar nenhum.

Lá vem um brilho, e outros tantos,
a escuridão, dimensões do longe,
dos laços enfeitados daquele sapato
que surge do nada.

Não há necessariamente desejo
de entendimento: um brilho é um brilho,
uma flor orvalhada é aquela que nos mata
a cede na manhã escolhida.

Voar por entre rosas
sem ferir espinhos
revelar-se cor,

tragando uma gota de orvalho.





PRIMEIRA PESSOA
À Iya Mi Omin’inlê




A primeira vez que vi a lua
havia um risco entre as estrelas
e uma poesia incandescente
galopando em meu peito.

A primeira vez que o mar
esticou meus olhos para longe
da margem esquerda de meu destino
floresceu um Messias no jardim de meus quintais.

Na primeira vez, havia cinzas
das páginas derradeiras do medo.

Na segunda, a lua ensolarava
o silêncio do universo.

Na terceira, o mar batizava
nossos passos para o infinito.

Desde então, navego habitado
por espelhos e pedras polidas

de onde avistamos
o vazio.





ANTÍPODA





Esculpindo o silencio
aprisiono um pássaro.
Ele está no canto da parede

pálida, rebuscando o barulho
desatento de tantos dias livres.
Voar desbota fronteiras.

Ele pousa, à noite, seu destino estrelado
na fogueira de árvores inteiras.
A madeira estalando labaredas

é um canto de carretilha
esfolando o silêncio talhado
na parede desenhada. Pássaro

e canto... Ele sonha e livra o silêncio
de sombras presas aos nossos olhos
envaidecidos de incansáveis faíscas.






CANTO PARA HORIZ
a Cartagena de Índia,




Pôr o sol em teu mar
navegando em tua pele
um cavalo marinho.

Preciso mergulho
silenciado no olhar
claro azul celeste.

Esgotada a noite,
leve brisa sobrevoa
tua armadura rósea
iluminando o retorno
do vasto dia cavalgado.

Não há pássaros
sobre a flor d`água transbordada,
apenas luz, lacrimejada,

oferecendo-nos o horizonte.





CHUVA ALHEIA

A noite vai crescendo apavorante
E dentro do meu peito, no combate,
A Eternidade esmagadora bate
Numa dilatação exorbitante.

Augusto dos Anjos.


o mar estica o horizonte desesperado,
invade cada lágrima dos olhos de Deus.

chove esticado no horizonte, enquanto
corpos rolam e toda chuva lança harmonias

no vento tocado nos coqueiros. Chove.
corpos mapeiam suas danças alheias

na areia. Venta, uma nuvem passa,
um nó na garganta estrangula o silêncio
e nada alheio dentro do vazio.





NOITE DE ALMIRANTE

Triste amor que me separa
De minha terra e de tudo,
Amor que engole os minutos
Como cobra engole o rabo,
Amor que aponta o caminho
Mas não dá o itinerário,
Amor que arma suas velas
Mas depois afunda o barco.

Miryam Fraga


Quando escapam destinos
à beira do farol, a noite entorpece o sol

erguendo-se mar adentro.
Inocência alisada bordando arrepios

em louco cio de fêmea navegada.
Mapas? Não os quero resolvidos.

Todo barco guarda seu porto emudecido.
Preciso é esse farol que espedaça luz

onde se arrasta o sol. No coro vivo,
unhas no peito, e nelas o lodo

ofegante de amores à deriva.
Enxugada a lágrima, saudades.






IMPERATIVO DO BEIJA-FLOR





Navegada em si,

todos os portos
invadem manhãs
neste cheiro doce
de mulher desenhada.

Onde alimenta suada
a clara voz do dia ?

Onde tua flor regada
feri o sentido riscado na pele ?

Em chão rueiro,
me orvalha invadida,
voando sobre jardins ...





CUMPLICIDADE





Nosso amor
não cabe na monotonia
do dia de amanhã.





SONETO PARA O AZUL

O paraíso é onde o coração bate mais forte
E, olha, eu tenho o meu aqui: toca nele, é teu, dorme.
O destino nunca bate à porta
A penas entra sorrateiro.

Kátia Borges


A fita azul amarrada em teu passo
reflete céu e barcos soprando ondas
jogadas na areia, desfazendo pegadas
que nenhum farol guiou, mas ilumina.

Arrebenta e parte cada palavra
pregada na saliência aguardada.
Essa presença sentida no toque
se ajeita no peito guardado nu.

Nesse imenso azul flutua só, pássaro
lavando a alma em bem-me-quer: pouso
arriado em mulher despetalada,

em lençol de areia iluminada,
tecendo vôos, escancaradamente
nascidos em leito de chão pisado.





PEDRA DA BALEIA
À Yemanjá Ogunté e Averequete




A labareda clara da lua incendeia
a solidão da noite, e nada parece
iluminar os olhos do dia. Apenas
uma estrela amarelada apaga

o canto do que poderia ser um samba empretecido
cheio do rio por onde o farol segue o caminho
do azul celeste e branco. De lá, da lua e do farol,

margeiam a bênção em uma só mão navegada:

aquela estendida no leito da fé assentada
em fogo de olhos doces e serenos
de um pescador em busca de alimento.





CASA DE BARRO
Para Helena, Sophia e Boroni Arô Iku





O leite derramado dilacera
a inevitável fome da vida
guardada para o outro dia.





HERMANADAS
Para Rómulo Bustos Aguirre y las putas vírgenes de García Marques.





Estoy en la Plaza del Centenario,
Cartagena de Indias, pero mis pies
caminan en la Heroica Cachoeira,
margen izquierda del rio Paraguaçu.

Estoy en la Plaza del Reloj,
São Felix, en la otra margen del rio,
pero camino en Cartagena de Indias.

Estoy en los poemas de Pedro Blás Julio Romero.
Estoy en las calles, en Getsemaní.
Tal vez Raúl Gómez Jatín o un ángel clandestino
me regale colores del viento, de las nubes gris, un
punto de seguimiento .

Estoy amurallado
frente la ventana
donde habito
puertos de mi cuerpo

lleno de lunas,
danzas y nostalgia.

Sin, yo escucho el reflejo
de las estrellas foscas
dibujadas en esta canción
atragantada. Ojo hermano,

ya somos silencio
en blanco.





CONTEMPORANEIDADE
A Albino Rubim





Em instantes o futuro
se acostumará com o passado
presente frente ao espelho.





BOGOTÁ
Ao poeta Juan Carlos Ensuncho




Guardo a chuva
cotidiana, habitada
por caminhos distintos
e insistentes pingos
na frieza da cidade.

Desperto o brilho
do orvalho
regando cores
em jardins
despercebidos.

Sigo pássaros, o tempo eclipsa
nossos olhos lacrimejados,

seqüestra o aroma das ruas,
das casas molhadas com raios soprados
pelo sol.

O tempo encanta o futuro
e semeia a sombra por onde passamos
em silêncio, desenhando à Santa Fé
do verbo inicial.





PLACEBO
(uso contínuo)




Esse poema nasceu prematuro
por excesso de folhas em branco.





PAPA-CAPIM SOLITÁRIO





Na avenida San Martins,
bloco untado com cimento e arenoso,
um em cima do outro.

Paredes. Favelas. Casas. Ruas.
Travessas. Vielas. Telhados,
uma laje, um poste:

a possibilidade iluminada
de alguma esperança estendida
no varal colorido de nossa pele,

suor e lágrimas sem remorso, blues ou jazz.
Acelera o samba do vento
na mangueira, em sol maior,

no azul de todo verde e amarelo
e rosas cantadas. Rio as cores
vestidas com nossas roupas.

As roupas vestindo a nossa pele
sem cor cordial definida no canto
de boca cheia de dente

e ouro. E outros quantos
mais ou menos tentando
assobiar e chupar cana
no mesmo vento.

Cimento e arenoso
desenham paisagens
sem remorsos, blues ou jazz.

Eles têm a cor de parede. A cor da cidade,
dos quintais, a cor de um jazz... quando
fecha os olhos para dormir.

As cores nascem diante de nós
atados em preto e branco,
no canto do passarinho voando

engaiolado com Pau Brasil, na Avenida
San Martins, em Salvador,
na Bahia de Todos os Santos.